No Tem-Tudo
por Licínia Quitério
– Traz lugar?
Pergunta o homúnculo por detrás do balcão, por debaixo dos capachos e dos mata-moscas pendentes do tecto, entalado entre os grandes frascos de rebuçados e a pirâmide multicolor dos alguidares de plástico. Ao silêncio de incompreensão do cliente, repete, aparentemente agastado:
– Traz lugar ou precisa de um saco? É que temos poucos.
Assim se fala na Drogaria Moderna, de João Cipriano (Herd.os), Lda, mais conhecida no bairro pelo Tem-Tudo. Fica numa dobra de velha Calçada de Lisboa, sinuosa como a história da própria Cidade, povoada de pequenas lojas que, tal como o Tem-Tudo, resistem, não se sabe bem como, à avalanche inexorável das novas modas que tudo arrastam e removem e destroem e refazem.
A Dona Amália, que vende queques para fora, receita da sua falecida mãe, uma delícia, a desfazerem-se na boca, vem ao Tem-Tudo por via de comprar um rapa-tachos novo, que o velho já cumpriu bem a sua obrigação, mas agora, de tão gasto, larga pedacinhos de borracha que podem misturar-se na massa e estragar-lhe o negócio que tanto jeito lhe dá para ajudar o neto. De há uns tempos a esta parte, ele não para de lhe pedir ajuda para comprar gasolina para a moto que deixou de arrumar ali à beira do passeio, alegando ter encontrado estacionamento mais seguro.
– Onde? Ali atrás!
E alonga o braço, num movimento impreciso, enquanto funga.
– Sempre constipado. E magrito. Uma ralação, este miúdo.
O Zeca, filho da Dona Antónia da tabacaria que fala duas oitavas acima, de modo a fazer-se ouvir ao longo da Calçada sempre que diz Bom Diiia, só ele ignorou o alarido e aproveitou para ser atendido.
– Fósforos, uma caixa.
– Das grandes ou das pequenas?
O Zeca coçou a orelha, ou antes, torceu-a e disse:
– Sei lá. A minha mãe não disse.
– Então levas das grandes. Se não for, diz à tua mãe que eu destroco. Isto é preciso uma paciência!
– Tá bem, prontos.
Saiu com as mãos nos bolsos dos calções, a fazer salientar o traseiro gorducho, frequente motivo de implicâncias dos adultos que atiram inconveniências:
– Que grande padaria! Para que queres um cu tão grande?
Mas o Zeca tem uma fórmula mágica para lhes acabar com a gozação:
– É para cagar!
E segue o seu caminho, expelindo o sopro com que melhor consegue imitar um assobio. Depois de breve silêncio, algum dos crescidos desabafa:
– O cabrão do puto é mesmo malcriado! Onde é que se viu um fedelho ganhar às palavras com um homem? Já não há respeito como antigamente, é o que é.
Licínia Quitério
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